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O Historiogger

História e blogosfera (ou faz de conta que sim)

História e blogosfera (ou faz de conta que sim)

O Historiogger

12
Abr22

manias de historiador


Todos nós temos manias, pequenos vícios, superstições e hábitos irracionais. Quando se é miúdo são muitos, como pisar só as lajes brancas, fazer equilíbrios nos carris, meter o dedo lá, onde nos dizem para "não mexer", etc. Quando crescemos, deixamos de dar por isso. Mas elas continuam lá. E algumas agravam-se. Uma que me afeta particularmente é a de ver datas em todo o lado. Quatro dígitos em que o primeiro seja um 0 ou um 1, então, é uma desgraça, vejo logo uma data e associo (ou tento) a um evento. Acho que o meu testemunho "anti-efeméride" que escrevi numa introdução de um livrinho sobre  "Os Dias da História" escondia uma reação do meu subconsciente a esta mania.

Lembro-me, nos tempos "da tese", dos dias sucessivos de secretária e de escrita (e das dificuldades crónicas de concentração, evidentemente), de olhar para o relógio e procrastinar conscientemente com datas. Almoçar e ficar disponível para trabalhar "na conquista de Ceuta" (14:15), e descobrir, pouco depois, que já tinha passado "o descobrimento do Brasil" (15:00). Ah! e jurar a mim mesmo que começaria a trabalhar "no fim da tese" (16:19 - data terminal da cronologia da dita), o mais tardar pelo "Conde de Linhares" (16:29-16:35 - vice-rei da Índia). E que lá pelas Invasões Napoleónicas, o mais tardar pela Revolução Liberal, aquela parte teria que estar escrita e acabada. Claro que a coisa arrastava-se sempre até à viragem do milénio, geralmente entrava nos domínios cronológicos da ficção científica e muitas vezes passava para o dia seguinte, num reset que fazia repetir tudo.

Mais recentemente, essa mania passou para os combustíveis, quando as bombas passaram a exibir os preços no exterior. Enquanto a coisa andou pela Idade Média, ainda vá que não vá, séculos XIII e XIV nunca foram o meu forte. Agora quando nos aproximámos do século seguinte é que foram elas. Durante algum tempo, bem, utilizei isto a meu favor, era uma forma de poder comparar as várias marcas. A BP estava no Tratado de Alcáçovas, a Cepsa, na Mina, a Galp, na viagem de Colombo. Os talões de desconto baralharam tudo, calma lá que História e Matemática nem sempre se deram bem. Depois habituei-me a ir à Prio porque poupava-me a contas complicadas de "0,10 € de desconto em cartão" (com validade limitada) e porque fazem recolha confortável de óleo culinário usado.

A recente subida dos combustíveis despertou-me para o assunto. Raios, chegou a entrar no domínio da futurologia, eu sei lá o que associar a 2027? Há dias confortei-me ao ver "George Orwell/Trovante" numa das bombas. Uma (pequena) costela de mim até gostou, afinal tudo o que mais caro que 1,966 € tem a ver com a minha vida. Palpita-me que nas próximas semanas, e apesar das promessas governativas, não sairemos muito do Estado Novo ou da Guerra Fria. Pronto, lá está, lá vem a Ucrânia e os russos a propósito. Raios. E eu a jurar que iria passar uns minutos a escrever ao correr da pena sem me lembrar da guerra.

25
Mar22

a represália simbólica


Há uma cena do "Império do Sol" que me marcou particularmente: aquela em que, após o campo de prisioneiros em que decorre a ação ter sofrido um ataque da aviação norte-americana, os guardas japoneses atacam os barracões onde os prisioneiros estavam alojados, partindo janelas e instalações. O médico que por lá anda grita algo como "que estupidez, que culpa temos nós?". É um facto que a guerra acirra e estimula a cegueira e a estupidez (como se a Humanidade não estivesse já tão generosamente servido de ambas), mas particularmente irracional é a lógica da - bom, como chamá-la? - "represália simbólica", aquela que em nada contribui para o conflito presente ou passado, mas apenas como alívio, desforra e vingança, ainda que completamente inútil. Mais que inútil, injusta, porque incide sempre sobre quem está indefeso e, com a maior das certezas, não tem qualquer culpa ou responsabilidade. Incide sobre pessoas, mas também sobre cultura, sobre memórias, sobre História, numa espécie de torrente que leva tudo adiante.

Há uns anos, num encontro internacional de uma prestigiada ONG que decorreu em Lisboa, um dos elementos do Board internacional insurgiu-se e protestou por considerar inadmissível e ofensivo que uma das salas de trabalho tivesse uma determinada designação. Ainda pensei que algum responsável desvairado do hotel onde decorriam os trabalhos tivesse batizado a sala de "Adolf Hitler", "White Power", "Fags Go Home" ou "Negroes Not Allowed", tanto mais que se trata de uma ONG de defesa dos Direitos Humanos. Fui ver. A sala chamava-se "Vasco da Gama" e o senhor em causa era indiano. Como historiador, compreendi o desagrado que o nome lhe possa ter causado, porque conheço tanto os atos do referido personagem como o que a historiografia indiana pós-1947 discorreu acerca dele. Mas fiquei a pensar no perigoso que é este tipo de atitudes, em variadas dimensões. No essencial, não compreender que os personagens da História podem ter ângulos distintos e significados diversos. Estando em Portugal, nada estranha que uma sala de um hotel tenha o nome de um dos seus heróis, além do facto de Vasco da Gama não ter sido propriamente um Gengis Khan. Naquele momento, senti que era a nós, aos anfitriões que estava a ser apontado o dedo pelo passado de Portugal, a retirada do nome da sala era uma "represália simbólica" da História, ainda que despropositada e, em boa verdade, pouco polida. Felizmente que o pequeno incidente não teve consequências, nem pessoais nem no sucesso dos trabalhos em curso. Mas tive pena de não ter tido ocasião de falar melhor com ele e de lhe explicar tudo isto. Fiquei-me pelo riso ao imaginar na apoplexia que um passeio à margem Sul lhe poderia ter causado.

Vem isto a propósito da exclusão de nomes de figuras russas de cartazes culturais, de não haver filmes russos no Fantasporto e de a Universidade da Florida ter retirado o nome "Karl Marx" de uma das salas, devido à invasão russa da Ucrânia. É daqueles casos que não contribuem em nada para coisa nenhuma, sabendo perfeitamente, ainda por cima, que nem Marx era russo nem a Rússia é comunista. No fundo, é apenas mais um degrauzinho que se desce na escala "represália simbólica", a caminho do absurdo.

23
Mar22

back to the basics


Depois do choque, de uns gaguejos e de uns posts acerca do tema que está a abalar o mundo, vou finalmente começar a escrever sobre o que me levou a criar este blog, ou seja, à minha experiência como investigador (veterano) e docente (novato) de História. A guerra é a guerra, como diz o Fausto, mas, mas, mas. Não sou "especialista" nem comentador de política internacional e acompanha-me sempre um vago sentimento de dejà vu, que o que digo já foi escrito, replicado e partilhado algures e que me limitei a compor retalhos de opinião alheia. Além disso, acompanha-me sempre uma sensação de frustração e de algum desalento decorrente de debitar "achismos" e largar bitaites, no alto do meu conforto, acerca de uma situação tão aflitiva em termos humanos, de compor "cenários" geoestratégicos em jeito de tabuleiro de xadrez perante tantas vidas destruídas ou ainda - e como é tão comum por aí - de não resistir a largar fel sobre quem não partilha das minhas opiniões, mesmo que essa falta de comunhão resulte de simples ignorância, de enviesamento informativo ou cegueira ideológica. Este incómodo em comentar a guerra como se fosse futebol deve ser, quem sabe, o resultado dos meus anos na Direção da AI - Portugal. Não importa. Há dias "desamiguei" uma pessoa no Facebook, não por discordar - e não é pouco - do que escreve e partilha mas porque me senti ofendido. Fiz um comentário no seu mural (a um post particularmente estúpido), o autor replicou e um seu "amigo" disse que responder-me era "dar pérolas a porcos". E ele colocou "like". Bom, se alguém (que não conheço pessoalmente e que me "pediu amizade" já não sei bem quando) "gosta" que outro alguém me compare a um porco no seu mural, não é decerto meu amigo,  com ou sem aspas, virtual ou realmente. É verdade que a guerra acirra as tensões e raramente promove a concórdia e a amizade, mas parece-me que a tragédia na Ucrânia é apenas um catalisador da degradação das regras de convivências e do debate público que vem de longe. O meu último post aqui gerou uma pequena torrente de comentários mais ou menos desvairados, sem grande sentido nem utilidade. Hesitei antes de aprová-los, mas não criei um blog para exercitar o lápis azul. A verdade é que o insulto passou a quase-norma, a manifestação de desprezo, a comportamento banal, e a agressividade, a rotina. E palmas nos bastidores, sempre. Invejo e admiro uma amiga minha (não é segredo, é a Helena Araújo) que "administra" uma "Enciplopédia Ilustrada" no Facebook com infinita paciência e sensatez, a impôr regras de convivência, a moderar tensões e a gerir egos. Ná. Voltarei à guerra apenas quando tiver algo que considerar importante a dizer. Até lá, back to the basics.

21
Mar22

notas de guerra


1. A discussão em torno do assunto do dia (infelizmente, deste, de vários passados e de muitos ainda por vir) recordou-me outros tempos em que o mundo parecia simples, com dois blocos antagónicos. As discussões de política internacional emanavam então, no essencial, de posições ideológicas em confronto, que levavam cada um a denunciar os erros, abusos, prepotências e agressões do outro lado. Quem viveu os anos 80 sabe bem do que falo. De um modo geral, havia pouco espaço para quem estava "de fora". Direitos Humanos, direito dos povos à autodeterminação eram meros argumentos esgrimidos. De um lado, lá vinham o Chile e Granada; do outro, Afeganistão e Polónia (só para citar os mais comuns por essa altura). Passei por "comunista" várias vezes, e por "CDS" outras tantas. O que me surpreende hoje é que, já não existindo ideologia que justifique a invasão russa da Ucrânia, persista uma nostalgia sem sentido de quem se habituou a amaciar a agressividade da Rússia na ilusão de que é a herdeira do socialismo internacional, a força que contém o imperialismo americano. Não é. É apenas uma brutal invasora de uma nação soberana e uma ameaça para a ordem internacional.

2. Esta guerra é nova. Invocar exemplos paralelos - antecedentes ou "contextos" - não satisfaz. Não faz sentido invocar o "alargamento da NATO". A NATO alargou-se? Sim. Depois de Bush e Clinton terem prometido verbalmente a Gorbatchev que não o fariam? Sim. É uma ameaça à Rússia? Depende de que Rússia. A uma Rússia autocrática, saudosista do império, esta que existe hoje, decerto que sim. Não vi, até agora, ninguém relembrar o seguinte: Foi a NATO que se "expandiu" até à Europa Oriental ou foram os países dessa mesma Europa Oriental que se apressaram a pedir a adesão (e à UE também) como forma de solidificar as suas frágeis democracias e garantir a sua segurança? As tropas da NATO invadiram-nos, colocaram governos fantoche e forçaram a adesão (como a URSS fez aí mesmo depois de 45, por exemplo)? Sobre isto acho que estamos conversados.

3. Não me venham - como Pezarat Correia há dias, numa crónica muito partilhada e aplaudida - traçar o paralelo com a intervenção da NATO na ex-Jugoslávia. Já nos esquecemos dos discursos inflamados de Milosevic pela "Grande Sérvia" (apoiado pela Rússia), da República da Krajina, das limpezas étnicas, de Karadzic, dos campos de concentração, dos massacres de civis? Evidentemente, dizer - como li muitas vezes - que a culpa foi toda dos sérvios é um disparate, basta recordar as milícias fascistas croatas, o ultranacionalismo de Franjo Tudjman, o reconhecimento precipitado da independência da Croácia por Helmut Kohl. A Jugoslávia era um vespeiro de nacionalismos pacificados à força, de ódios e rancores acumulados por séculos de opressões estrangeiras, de uma paz podre que se desfez quando Tito morreu e o socialismo colapsou. A NATO interveio, foi desajeitada, cometeu erros - o reconhecimento do separatismo do Kosovo, em particular -? Com certeza. Mas que outra coisa deveria fazer? Assistir de braços cruzados à "limpeza étnica" e à criação da "Grande Sérvia"? E, já agora, que raio tem a ver com o que se passa agora a invasão territorial da Ucrânia pelo poderoso vizinho, com bombardeamentos indiscriminados e uma catástrofe humanitária?

4. Como é evidente, não falta hipocrisia. Quando Putin reprimiu brutalmente os chechenos estava a resolver problemas domésticos e a combater os "radicais islâmicos", quando esmagou os georgianos era uma questão regional do Cáucaso, quando interveio na Síria e pulverizou Alepo - como Mariupol, hoje - ninguém se preocupou muito, o que importava era que a maré de refugiados - muçulmanos, ainda por cima, quem sabe terroristas - não nos batesse à porta (e por isso pagámos à Turquia para os manter por lá); tive pessoas próximas a perguntar-me "porque é que eles não ficam por lá, pela Arábia, que tem dinheiro e é muçulmana como eles"; na verdade, até suscitava aplausos, uma vez que combatia o Daesh e o terrorismo islâmico que horrorizava a opinião pública. Que as suas táticas brutais causassem inúmeras baixas civis, bom, era lamentável, mas o mundo está cheio de guerras, não é? E antes o "parceiro" russo autoritário que metia ordem nos seus arredores e contribuía para a "estabilização" geopolítica do que um caleidoscópio de conflitos, crises, migrações, atentados e "radicalismo islâmico".

5. Há 3 semanas, tudo mudou e ainda estamos a tentar compreender e classificar o que se passa. Tudo é novo, por muito que nos seja confortável usar velhos conceitos e categorias que, em boa parte, estão desajustadas à realidade. Um deles é "esquerda" e "direita" para classificar Zelenski ou Putin ou as posições de quem se pronuncia sobre o conflito. Desnorte, confusão ou propaganda, só. "Nazismo" é outro. Isso acabou em 1945. O que há são nacionalismos agressivos, totalitários, populistas e intolerantes. "Reconstituir a URSS" é mais um. A URSS morreu em 1991 e não ressuscitará. O que existe é imperialismo russo, alimentado e protagonizado por um autocrata calculista que viu na derrocada de Cabul um sinal para colocar em prática planos e ambições expansionistas, perante uma Europa gorda, preguiçosa, medrosa e domesticada. Até isso mudou subitamente. Por fim: por muito impressionante que seja o grau de destruição das cidades ucranianas, o sofrimento das populações e a dimensão da crise migratória, falar em "genocídio" não faz sentido. Genocídio é outra coisa. Que o digam judeus, ciganos, arménios, tutsis, yazidis, rohingya, entre outros.

10
Mar22

o preço da paz


Hoje vou armar-me em "analista". Afinal, se toda a gente tem a sua postinha de pescada a largar acerca da crise atual, tantas vezes com conhecimento zero sobre o assunto além do básico, porque não eu (com conhecimento -1), não é verdade? Ainda por cima, esta crise foi certamente desencadeada para me estragar a festa: criei este blog para discorrer sobre História, o meu trabalho como investigador e a minha experiência como docente e zás!, a guerra tinha que começar logo no dia da minha primeira aula - presencial, depois de um ano de aulas online - deste semestre. Portanto, vou dizer de minha justiça e ver se arrumo o assunto.

Estou, como meio-mundo, desnorteado com o que se passou nas duas últimas semanas; o outro meio-mundo está cheio de certezas, sorte de quem as tem. O mundo que conhecia, feito da segurança e do conforto da Europa, com guerras longínquas no tempo e no espaço, desabou. Este que se me apresenta é bem mais incerto e inseguro. Tenho lido todo o tipo de opiniões, bitaites, "análises" e soluções. Há uma óbvia e simples: a paz. A procura da paz, de soluções para a paz, do fim rápido para o conflito. Como se fosse possível fazer o tempo voltar para trás. Não o é. De um modo geral, as opiniões dividem-se em dois campos: o da estratégia geopolítica, que tende a ver tudo isto como um tabuleiro com peças e peões, hegemonia mundial, estados, interesses e segurança, e o do ativismo pacifista, que invoca o diálogo urgente entre as partes e a necessidade de uma rápido fim da guerra que poupe e evite o sofrimento das populações. Os primeiros reconhecem o poder da Rússia, potência mundial, e a necessidade de satisfazer as suas ambições e o seu orgulho, sem a qual não se chegará nunca a uma solução; os segundos preconizam a paz a qualquer custo, já, porque cada dia que passa agrava a catástrofe humanitária. Ambos estão certos, ambos estão errados.

Não receio parecer cínico e cruel: a paz ainda vem longe, e o conflito vai piorar antes de melhorar. E a solução será, infelizmente, incompleta e frágil. Armar a Ucrânia, dar-lhe instrumentos para se defender da agressão? Legítimo, mas perigoso. Fazer a paz a qualquer custo, ceder, tornar a Ucrânia num "estado-tampão" neutralizado? Talvez mais perigoso ainda: recompensar uma agressão é potenciar novas iniciativas. Moldávia e estados bálticos seriam, possivelmente, os alvos seguintes. Não aprecio as comparações de Putin com Hitler ou do Donbass com os Sudetas. Também execro as permanentes evocações do "fascismo", da "extrema-direita" chamada para o barulho. Aliás, é amargamente divertido ver o total desnorte que por aí vai sobre "esquerda" e "direita" para etiquetar ou classificar atores ou espetadores do conflito. Há uma palavra que, na minha opinião, classifica tudo bem melhor: "nacionalismo". Esta guerra é, contudo, confusa até por esse motivo: não há aqui um antagonismo religioso, étnico, civilizacional. Não há ódios acumulados (como nos Balcãs ou na Palestina), desconfianças seculares (como no Médio Oriente), fronteiras coloniais mal resolvidas (idem), clivagens étnicas (como no Ruanda). Russos e ucranianos partilharam séculos de História, formaram o coração da URSS, têm afinidades linguísticas, religiosas, comunitárias, familiares. Há, sim, um poder hegemónico e um vizinho mais fraco, que tentou escapar da sua órbita. Não venham com conversas da expansão da NATO, que me recorda imediatamente a parábola do argueiro no olho e da trave. Há um tabuleiro geopolítico que envolve EUA, Rùssia e China? Sem dúvida. Mas, e as aspirações dos povos, o direito internacional, a direito à autodeterminação dos povos? Os ucranianos não têm o direito de pertencer à comunidade que quiserem, à aliança que desejarem, de decidir o seu futuro sem receio de ofender os ouvidos sensíveis e os caprichos imperialistas do seu vizinho? Decerto. Mas, muito provavelmente, o preço a pagar - pela Ucrânia e pelo mundo - seria demasiado alto. Estaremos dispostos a isso?

Nestes dias de choque, a solidariedade europeia manifesta-se de forma abundante e generosa. Ainda por cima - e é inevitável referi-lo - a proximidade geográfica, étnica, cultural dos ucranianos amplifica-a de forma quase desconfortável. Ver húngaros e polacos a acolher ucranianos de braços abertos, enquanto há pouco construiram muros e arame farpado (para não falar de cargas de polícia) para afastar afegãos, sírios e africanos causa uma enorme azia. Ainda há poucos meses havia gente a tentar entrar na Polónia via Bielorrússia, lembram-se? Onde estava a humanidade e a solidariedade? Simples, era um problema "externo" (a guerra lá longe) que se tentava evitar "importar". Pois o da Ucrânia não pode ser ignorado, está mesmo à porta. É uma verdade. Mas esta generosidade vai esgotar-se rapidamente, quando os impactos económicos e sociais se tornarem pesados e insuportáveis. Não tardaremos a desejar que aquilo acabe, que Zelensky, o herói romântico, se submeta e que tudo possa regressar à normalidade quanto antes. A paz, uma outra paz, obtida à custa do sacrifício dos direitos daquele povo a decidir o seu destino. Estaremos dispostos a semelhante hipocrisia? Não sei se quero responder.

26
Fev22

pensamento do dia


Estou muito sensibilizado com a disponibilidade europeia (incluindo a polaca e a húngara) para acolher os refugiados ucranianos. Só lamento não termos sido - nós, europeus - capazes do mesmo em 2015 perante a catástrofe síria. Talvez por acharmos que era uma guerra longínqua, "lá deles" (afinal, andam sempre em guerra, não é?), embora se conhecesse o apoio e a intervenção do mesmo autocrata russo que agora nos perturba e aflige. Eram muçulmanos, estranhos, quase alienígenas, quem sabe terroristas. Até pagámos aos turcos para os reterem e não nos ralámos muito com o arame farpado que diversos países ergueram, porque a Europa não suportaria uma torrente migratória daquelas. Talvez agora acordemos do torpor confortável que nos julgava longe destas crises.

26
Fev22

pôr as barbas (da História) de molho


Acredito que haja muita gente a dar uma vista de olhos à página da Wikipedia sobre a Ucrânia. Eu fi-lo (sim, afinal vou escrever sobre o assunto, ao contrário do que disse, isto começa bem, portanto). O que lá consta pode chocar os mais desatentos ou os mais distraídos com o que está a acontecer por estes dias: um cruzamento de impérios e de domínios estrangeiros, entre lituanos, polacos, russos, otomanos, austro-húngaros ou alemães; pedaços de território retalhados, reconstruídos e recauchutados; opressão, migrações, deportação forçada de populações, minorias, servidão. Por cá gostamos muito de invocar a nossa História a propósito de tudo e de nada. A minha tirada favorita, que oiço muitas vezes reproduzida por comentadores e opinadores nas nossas televisões, é que Portugal é um país "com muita História" (passo adiante o "acontecimento altamente histórico", que também aprecio muito). Além do interesse de saber como tal coisa se quantificaria, a verdade é que há povos para quem a História não é um foguetório turístico ou uma pregadeira que se exibe na lapela, é um fardo que os oprime e mantém reféns, que condiciona o seu presente e o seu futuro e do qual anseiam por se libertar. 

Putin não deixa de ter alguma razão quando afirma que a Ucrânia é uma criação recente. Mas isso é, uma vez mais, uma invocação enviesada e parcial da História. Enviesada e, naturalmente, interesseira. Porque não é a antiguidade que determina a legitimidade da existência de um estado, é o seu reconhecimento pela comunidade internacional, quantas vezes de forma apenas possível, hipócrita e injusta. Perguntem a qualquer país africano que sentido "histórico" faz a delimitação das suas fronteiras, traçadas pelas potências coloniais no século XIX. É um velho problema, e bem conhecido, que está na base de inúmeras tensões e conflitos mas que não pode ser resolvido de forma unilateral. Sobre isto estamos todos de acordo. Ou depende. Batemos palmas à possibilidade de criação de um Curdistão porque apreciámos a forma como os curdos fizeram frente ao Daesh e não gostamos dos turcos e dos iraquianos.Nem todos percebemos a caixa de Pandora. Muita gente aplaudiu a independência do Kosovo, porque os kosovars eram os bons e as vítimas e os sérvios eram os maus, os genocidas. Mas que barbas compridas da História havia a pentear e a fazer laçarotes, tranças e permanentes à conta dos Balcãs, não é verdade?

O mesmo (ou semelhante) pode ser dito, em boa verdade, acerca de toda a Europa oriental, além da Ucrânia. A História - a recente e a remota - é aqui, repito, um fardo. Mas o cenário forjado na 2ª metade do século XX e acelerado no seu final abria nesgas de alívio desse peso. O segredo do sucesso da ordem europeia pós-45 e que se alargou no cenário pós-91 envolveu soluções democráticas e de consenso, primado do Direito e respeito pelas minorias e pelos Direitos Humanos. É uma banalidade tão papagueada que é quase enjoativo reproduzi-la pela enésima vez. Países com tradição democrática (longa ou em construção), espaço para monitorização internacional, imprensa livre e transparente, liberdade para a ação de ONGs e organizações de defesa dos Direitos Humanos estão em vantagem para consegui-lo e, de alguma forma, aliviar o peso do fardo opressivo da História, tanto da sua e como das alheias. Infelizmente, o que vemos nos últimos anos, mesmo no seio da própria UE, foram vários reveses. Nas suas margens, é o que se vê desde há poucos dias: uma potência que tenta recuperar a sua hegemonia regional - e orgulho nacional - perdida há 30 anos, da única forma que conheceu ao longo da sua História, ou seja, pela força. Que a Rússia tenha deixado, em pouco tempo, de ser um "parceiro da Europa e um pilar da estabilidade internacional" e passado a "ameaça para a Europa e foco de desestabilização da ordem internacional" é uma mudança profunda de longo alcance e que vai além dos noticiários e das propagandas. Uma alteração histórica que vai além da História.

22
Fev22

ah, a História


Hoje é 22.02.2022. No dia em que decidi abrir este blog há notícias perturbantes do agravamento da crise na Ucrânia, sobretudo após o surpreendente discurso do presidente russo ontem. A História, essa disciplina que toda a gente utiliza a seu bel-prazer, quantas vezes para justificar o injustificável e que serve de argumento para tudo, volta a estar na ordem do dia perante o cenário de guerra na Europa que se aproxima.

Não era essa a minha intenção - e discorrer sobre a Ucrânia continua a não sê-lo - mas apenas a de regressar à prática de escrita num blog. Construí vários, participei nalguns coletivos, e depois, como tanta gente, rendi-me às "redes sociais". A vitória da preguiça e da rapidez. Escrever num blog é lento e o Facebook dá, ou pode dar, feedback imediato. Mas acabei por me cansar; demasiada publicidade e "conteúdos patrocinados", demasiados conteúdos enganadores e, sobretudo, demasiada volatibilidade. Escrevemos um post e ele desaparece dois dias depois, engolido pelo turbilhão do feed. E não se consegue escrever nada de jeito, em boa verdade, só umas piadolas bem apanhadas, uns suspiros, uns desabafos e uns links. Depois, uns likes. E é tudo.

Tinha saudades de escrever sem pressas e sem limite de caracteres. Sobre os temas que me interessam, sobre História, sobre investigação em História, ensino da História e divulgação da História. E música, e cinema, e o que me der na gana. Hoje regressei ao ensino presencial, na NOVA FCSH, após um ano de aulas online. É disto que me apetece falar e escrever. Ou não. Sem likes.

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